domingo, 20 de setembro de 2015

A imperiosa verdade que faz de nós uma nação em Crise

Série Ensaios: Bioética Ambiental
Por Silvia Spinelli
Mestranda em Bioética

Uma notícia veiculada nos principais portais de notícias brasileiros  no dia 15 de maio último. relata que um pai que roubou carne para dar comida ao filho em Luziânia, na periferia de Brasília O caso trouxe novamente a discussão ética sobre a realidade do vulnerável ”criminoso” no Brasil. Ressalva-se que o personagem dessa história tratava-se de um eletricista desempregado, que sustenta um filho com o benefício que recebe por mês do programa Bolsa Família. Como o dinheiro não havia sido depositado na conta, Mário tentou roubar 2kg de carne de um mercado, mas foi pego pelo dono do estabelecimento, que chamou a polícia. O caso comoveu o país, inclusive os policiais que pagaram a fiança e compraram alimentos para Mario e eu filho passarem um mês mais tranquilo. Um policial deu a Mário 30 reais para voltar ao mercado e pagar pela carne furtada. Ao longo da semana, devido à proporção que o caso tomou na mídia, Mário arranjou emprego em uma firma em Luziânia. Agora a promessa de uma vida melhor para si e seu filho se aproximou de se concretizar.



Casos como esse, com múltiplas vulnerabilidades, são temas comuns nas reflexões do economista e professor Amartya Sem (http://www.unicamp.br/nepa/CriseAlimentosVersaofinal_17112009.pdf) nos últimos anos. Dedicado ao estudo de temas como pobreza, subdesenvolvimento e história econômica de países atrasados, o Prêmio Nobel de Economia de 1998 considera que, na raiz desses e de outros fenômenos, há uma carência comum: a de liberdade.
Na vida contemporânea, ficou comum referirmos que vivemos tempos difíceis. Parafraseando Hannah Arendt, vivemos “tempos sombrios”(http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A5.pdf). Crise econômica e do sistema financeiro, crise de confiança nas instituições, crise de valores, crise energética, crise de sustentabilidade, mudanças climáticas e de catástrofe ambiental, crise de identidade, guerras e terrorismo. Intolerâncias religiosas.   Impessoalidade nas relações. Dicotomia entre os velhos problemas que assolam nações pobres e novos desafios tecnológicos que se atropelam na desenfreada corrida pela modernidade.  
            O caso envolve diversas questões éticas, sendo o problema fundamentado principalmente pelo desrespeito aos princípios da não maleficência, justiça e princípio da liberdade. A privação da liberdade de Mario quando ao roubar carne foi encarcerado. Mas, muito antes disso, a privação da liberdade de escolha. Escolha do que comer. Mário já não era livre muito antes de suas três passagens policiais por roubo de carne. Sim, foram três furtos e essa recorrência no crime reforça sua fragilidade. A atitude de Mário, criminalizável pelo código penal vigente (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm), não fez dele um bandido. A opinião pública, reforçada pelas atitudes posteriores dos policiais filantropos, conseguiu criar um perfil de pai solitário, preocupado com o bem estar de seu filho, desesperado pela falta de recursos e pela fome. A fome oculta em tantos lares brasileiros, maquiada pela sensação de bem estar social vigente. Onde estão os valores éticos (justiça, não maleficência, autonomia) quando a fome, imperiosa, devasta toda a dignidade de um lar? Nas redes sociais, a despeito da atitude de Mário, muitos cidadãos execraram a atitude dos policiais que pela atenção especial dada a um preso por roubo, acabam por estimular atitudes justificada por questões sociais  típicas no Brasil.
Nesse momento do método, depois de fundamentar o problema com os princípios, vc deve deixar claro quem são os agentes e os pacientes morais. Lembre-se os primeiros tem poder de decisão, os outros estão vulneráveis a essas decisões, pois são tutelados direta ou ineditamente pelo outro... Primeiro pontue depois fale sobre cada um deles em cada paragrafo apontando as responsabilidades, argumentos de defesa, e deveres
            O discurso de Sen sobre a fome escondida atrás das telas LCD e das redes sociais vem muito ao encontro de outro grande nome das ciências éticas: Hans Jonas, que em seu “Princípio da Responsabilidade” (http://sites.unifra.br/Portals/1/ARTIGOS/numero_06/battestin_5.pdf) transfere a todos nós, contemporâneos de Mário o compromisso pela vida digna nesse planeta. (http://www.saocamilo-sp.br/novo/publicacoes/publicacaoEditorial.php?ID=67&rev=s).
Inclusive na vida que os netos de Mário terão, graças as nossas atitudes de hoje. Responsabilidade é o cuidado reconhecido como deve pelo outro ser e que devido à ameaça da vulnerabilidade se converte em preocupação. Considerar a pessoa não somente como um corpo, em sua dimensão biológica é um desafio. Felizmente estamos começando a ter sensibilidade para o cuidado com a vida humana, apontando-nos que a essência da vida é o cuidado. A sociedade (e até a mídia) cuidou de Mário e mesmo pela recorrência no furto, a barriga vazia e a empatia do povo brasileiro zelaram pelo que ainda restava de sua dignidade.  É zelando, promovendo o cuidado dessa unidade vulnerável pela dor e sofrimento que estaremos sendo instrumentos de vida digna. Quem cuida e se deixa tocar pelo sofrimento do outro se torna radar de alta sensibilidade, se humaniza no processo e para além do conhecimento científico tem a preciosa chance e o privilégio de crescer em sabedoria.
            A atual situação do capitalismo, como agente perverso desse cenário, vem deixando milhões de seres humanos em estado de miséria, violentados em sua dignidade, em sua humanidade, alijados dos processos de construção da cidadania e de respeito aos direitos humanos fundamentais (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_humanizasus_atencao_basica.pdf). Esse panorama fere os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf), assinada por 191 países. Neste documento, as nações se comprometeram a adotar medidas governamentais para que os artigos idealizados sejam cumpridos (UNESCO, 2005).
            Eu como Nutricionista e futura Bioeticista acredito que a sociedade sustenta o sistema perverso capitalista e sente-se confortável em sua inércia. As telas dos gadgets em nossas mãos trazem as notícias em tempo real entretanto distanciam-nos de nossas responsabilidades enquanto sociedade. Inclusive enquanto espécie.
            Hoje, além das crises que Hannah nos alertou em 1969,  o mundo passa por uma profunda crise de cuidados. A regra geral é “não me envolver para não sofrer”. E esse individualismo, ferindo os princípios éticos do cuidado e da cooperação, reforçado pelas frias redes sociais, agentes morais da iniquidade, e pela máscara da fibra ótica, via satélite, ainda vai imperar por um bom tempo.

            Este Ensaio foi elaborado para disciplina de Temas de Bioética e Biologia do curso de Mestrado em Bioética tendo como base as seguintes obras:

ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras. 1987.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2010 (Série B. Textos Básicos de Saúde – Cadernos Humaniza SUS; v. 3);

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA  A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Paris: Unesco, 2005. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/00146180por.pdf/>. Acesso em: 30 de maio 2015;

Homem preso por roubar carne recebe oferta de Emprego. Portal R7. Disponível em: http://noticias.r7.com/distrito-federal/fotos/homem-preso-por-roubar-carne-para-o-filho-recebe-ofertas-de-emprego-veja-fotos-da-casa-do-eletricista-15052015#!/foto/1. Acesso em 07 de maio de 2015.

JONAS, H. Princípio da Responsabilidade. Disponível em : http://www.saocamilo-sp.br/novo/publicacoes/publicacaoEditorial.php?ID=67&rev=s. Acesso em 30 de maio de 2015.

SILVA, T.T. CORREA, V.H.C. A crise mundial dos alimentos e a vulnerabilidade dos países periféricos. Disponível em: http://www.unicamp.br/nepa/CriseAlimentosVersaofinal_17112009.pdf. Acesso em 29 de maio de 2015.

A miséria precisa ter a causa atacada, diz Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia de 1998. Disponível em:

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